quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

CARNAVAL, UMA ETERNA REINVENÇÃO

Os críticos dizem que o carnaval cuiabano acabou. Transformou-se tanto que perdeu o sentido. Teriam razão eles? Tenho minhas dúvidas. Afinal, o que percebo é que, como toda manifestação cultural, o carnaval só sobreviveu porque não ficou estagnado no tempo, como se estivesse em uma redoma. Com suas origens antes de Cristo, tem passado por inúmeras transformações ao longo dos tempos. Não poderia deixar de ser diferente aqui, no Mato Grosso. Temos um carnaval ao modo daquilo que nossa gente gosta. O povo inventa e reinventa os festejos de Momo desde tempos imemoriais. Antigamente aqui também brincava-se o “Entrudo”, uma farra que consistia em jogar água de cheiro nas pessoas. O problema é que a essa água se adicionavam outras coisas nada agradáveis e nem muito menos perfumadas. Como era de se esperar, a brincadeira causava problemas, quase sempre. Por isso passou a ser reprimida pela polícia. Enquanto isso, a elite se reunia em associações ou residências, talvez de forma um pouco mais comportada ou contida. O Clube Feminino, onde hoje funciona a Secretaria Municipal de Cultura, foi um ícone desse período. A ele só a elite tinha acesso. Negros, pobres e minorias sexuais eram excluídos. Chega um momento, porém, que essa festa migra para as ruas, reunindo, finalmente, pobres e ricos. Novos elementos são incorporados, como o corso, a batalha de confetes e os cordões. Mas isso tudo é passado. O que se segue, vocês já conhecem.

MISS LENE DE MUITOS CARNAVAIS

“Dito”, ou “Miss Lene”, como queiram, é figura emblemática do carnaval cuiabano. Embora more na zona rural de Várzea Grande, é em Cuiabá que curte o reinado de Momo. Este ano ele vem festejando desde o Baile da Cidade, que antigamente era restrito à elite local. Chegou em grande estilo: vestida de vedete. Lembrou-se que, até recentemente, jamais poderia fazer isso: “Travestis não passavam nem perto”. Hoje, felizmente, os tempos são outros. Miss Lene acompanhou essas mudanças todas. É do tempo das marchinhas, dos cordões e dos blocos de máscaras. Perfeitamente adaptado aos tempos atuais, curtiu o carnaval cuiabano em toda a sua essência. Fez-se presente nos ensaios de escolas e blocos e na terça-feira foi um dos destaques do “Boca Suja”. Iria sair em um outro bloco, como “Maria Bonita”, mas não sabe o que houve. Na última hora sua personagem teve que sair do enredo. Abraçado pelo “Boca Suja”, transformou-se em “Odalisca”. E arrasou, como sempre!
(Na foto, Miss Lene comigo no Baile da Cidade deste ano)

SAMBA E MILITÂNCIA

A Rainha do Carnaval Cuiabano deste ano, Michele Oliveira, é de linhagem nobre. É da nobreza do Samba. A mãe, Laura Grace, nos demais dias do ano é engenheira florestal, mas no reinado de Momo ocupa com charme e competência o posto de passista. Já foi, inclusive, Madrinha de Bateria de blocos famosos da capital, como Boca Suja, Mocidade Independente Universitária, Pega no Meu Coração, Urubu Cheiroso, dentre tantos outros. A filha também vem seguindo os passos da mãe. Mas isso é pouco para falar delas. Militantes do movimento negro, ambas são membros do Grupo de União e Consciência Negra (GRUCON) e também do Instituto de Mulheres Negras (IMUNE). Eu as conheci há muitos anos atrás, no bairro Araés, na casa de Geraldo Henrique Costa, fundador do GRUCON. Michele, até então uma menina, fazia aulas de dança afro no “Grupo Cultural Filhas de Oxum”, fundado por Antonieta Costa, filha de Geraldo. Está explicado, assim, em parte, alguns dos motivos pelos quais Michele Oliveira fez a diferença como Rainha do Carnaval Cuiabano.

CARNAVAL E SIRIRI: A FESTA DE VARGINHA

A pacata comunidade de Varginha, zona rural de Santo Antônio do Leverger, agita-se durante o carnaval. É um carnaval diferente, realizado a partir de suas especificidades culturais. É feito, desde tempos remotos, à base siriri,a tradicional dança de Mato Grosso, com instrumentos típicos e rudimentares, como a viola-de-cocho, o mocho e o ganzá. O boi-à-serra é figura de destaque. À frente dois foliões empunhando as bandeiras. Uma é do bloco, naturalmente. A outra, creiam, é de Santa Gertrudes. A festa começa na sexta-feira e acontece o dia todo, estendendo-se noite à fora. Com a ajuda da comunidade, rola café da manhã, almoço e jantar. Cada um dá o que pode: um pacote arroz ou macarrão, frango, carne ou tempero. A comida é servida na casa dos festeiros. Este ano o rei foi José Carlos Carvalho, conhecido como “Bigode”; e a rainha sua irmã, Vergília Carvalho. Os foliões saem pela comunidade cantando e dançando, visitando as casas. Nessas horas as pessoas param com tudo para também se integrarem à festança. Faltando-me fôlego para acompanhar os foliões, dei uma pausa e parei em um pequeno bar da vila, para tomar um refrigerante e comer um pastel frito na hora. Não consegui comer o pastel. A dona do bar, muito gentilmente explicou-se que àquela hora seria impossível atender ao meu pedido. O pastel só sairia depois da passagem do bloco. Ela está coberta de razão. Inconveniente fui eu. Desculpa aí. Impossível ficar indiferente ao carnaval de Varginha. Homens, mulheres, crianças e jovens envolvem-se espontaneamente. Mas já foi muito maior esse envolvimento. João Gomes Siqueira, 60 anos, contou-me que, há trinta anos atrás, o cortejo contava com mais de três mil pessoas, vindas de toda a redondeza: Barreirinho, Morro Grande, Carandazinho, Pai André, Souza Lima... Chegavam no sábado e só iam embora na Quarta-feira de Cinzas. João lamenta-se que os jovens não aprenderam a tocar os instrumentos e nem se interessam pelos saberes e saber fazer para continuar com a tradição. Por isso, os tocadores que ali estavam vieram de Cuiabá. “Mesmo assim ta bonito”, disse-me, emocionado. Ao final da festa, todos iriam para a casa dos festeiros, onde iriam jantar e subir o mastro para a festa de Santa Gertrudes. Nesse momento seria anunciado também oficialmente os festeiros do próximo ano. Assumiu, assim, o posto de rei Miro Amorim; e o de rainha, dona Nenê. Miro já sabe que terá muito trabalho pela frente. Por exemplo, precisará de muita diplomacia para ajudar a comunidade a superar um dos principais obstáculos à preservação da comunidade, hoje dividida por questões partidárias. Explicando melhor: se os festeiros pertencem a um determinado partido, os que são de partidos opostos não participam da festa ou não se envolvem tanto quanto a festa merece. Outro obstáculo é envolver os jovens. Mas Miro não se desanima. Ele sabe que é preciso zelar pela herança cultural de seus antepassados.

A MOÇADA DA VARGINHA

Em Varginha ninguém fica excluído. A terceira idade também participa e tem seu próprio bloco. Acompanhei esses animados foliões pela manhã de segunda-feira. A galera é animada e goza de plena forma. Quem não está lá muito bem, também participa. Nesses casos, o acompanhamento se dá dentro da ambulância. Eles ficam ali, sentadinhos no interior do veículo, e seguem o bloco. Há uma segunda ambulância, para caso ocorra alguma emergência. Isso, no entanto, não é motivo para baixo astral. A “moçada” se fantasia e vai para as ruas. Alguns carregam a bandeira do bloco e outros uma bandeira de Nossa Senhora Aparecida. E isso não deve ser pecado. A santa padroeira do Brasil certamente deve gostar de carnaval, caso contrário não seria a padroeira. O samba enredo deste ano foi tudo de bom. Para vocês terem uma idéia, vejam só o refrão: “Eu quero é Dipirona, bem gelada”. Concordam?

UM DIÁLOGO EM BOM CUIABANÊS

Esta é para ser lida ao ritmo da sonoridade típica de nosso falar cuiabano. A cena ocorreu na segunda-feira de carnaval, quase amanhecendo, em Santo Antonio de Leverger. Eu estava em um boteco e lá ouvi o seguinte diálogo entre duas mulheres:

- Num qué comê um cactchorro quente na tchapa?

- Hum hum...

- Ah, então vamos pra casa comer arroz co fejão!

- Hum hum... Acho que vou fazer um escardado!

É QUARESMA

Embora informalmente, temos a exemplo dos chineses, um calendário próprio. Afinal, não deixa de ter razão quem afirme que o nosso ano só começa após o carnaval. Pois bem, agora parece que as nossas vidas caminharão normalmente. Talvez por isso adentramos agora na Quaresma, cuja duração é de 40 dias, não contando os domingos. Durante este período os católicos aproveitam para orar, abster-se e fazer caridade. Deixar de comer algo que se gosta é uma forma de rememorar o período em que Jesus ficou no deserto sem se alimentar. Começa também a Campanha da Fraternidade. Lançada nesta quarta-feira pelo Conselho Nacional das Igrejas Católicas. O tema deste ano é “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro”. Isto porque, dizem, muita gente das mais variadas religiões, endeusa o dinheiro. Karl Marx tinha razão quando o chamou de “vil metal”. O mal necessário.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

POINT DO SAMBA

Nestes dias que antecedem o carnaval, a Praça da Mandioca, no Centro Histórico de Cuiabá, tem sido o reduto dos sambistas. O ponto de encontro dessa turma tem sido o bar do Mário, o nosso eterno Rei Momo. Pra quem não sabe Mário César é agora empresário da noite. O seu bar é um espaço gostoso, ideal para se reunir com os amigos nas quentes noites cuiabanas, pois é ao ar livre, na tradicional pracinha. Às sextas-feiras, então, o bicho pega, com altas rodas de samba. Dias desses quem apareceu por lá, dando uma canja, foi a cuiabana radicada no Rio de Janeiro, a mangueirense Dadá Maravilha. Que voz tem a Dadá... O bar do Mário tem dessas surpresas, além, claro, do quibe quentinho, delicioso.
(Na foto, Jack, eu, Laura, mãe da rainha do carnaval, e Nieta.  Saímos do Baile da Cidade direto pra pracinha.Pireiiiiii)

VERDADE OU MENTIRA?

Está rolando em Cuiabá o maior comentário sobre o documentário longa-metragem “Só Dez Por Cento é Mentira”, que aborda a vida e a obra do poeta Manoel de Barros. Dirigido pelo cineasta Pedro César, o filme vem fazendo bonito pelos festivais, conquistando alguns prêmios. Não chegou ainda por aqui, mas sei de gente que já viu, não sei como. Aos 93 anos de idade, Manoel de Barros é um dos mais consagrados escritores brasileiros. O filme diz que ele é sul-matogrossense. Isso acho que é mentira. Pelo que me consta Manoel é cuiabano, nascido no bairro do Porto...

PROTESTO E SILÊNCIO

Recebi alguns protestos por ter dito na última edição de minha coluna que Jejé vive numa Cuiabá homofóbica. Talvez eu não tenha me expressado muito bem, mas estava me referindo à época em que Jejé foi um jovem. Respeito a opinião das pessoas, mas não acho que Cuiabá foi algum dia um paraíso para os homossexuais. Se estes estão por todos os lugares, freqüentando inclusive altos postos, não é porque a nossa sociedade seja exemplarmente tolerante ou complacente, mas pela atuação dos movimentos sociais, com sua força de pressão. Sem se esquecer, lógico, da coragem e ousadia dos gays para peitarem a situação. Aliás, na mesma nota eu disse também que Cuiabá é racista. E ninguém protestou...
(Na foto,Jejé e eu no Baile da Cidade/2010)

MALDITO BANNER

Esta semana visitei o artista plástico Márcio Aurélio dos Santos, em sua agradável casa no CPA. Márcio convidou-me para batermos altos papos, coisa que o tempo ultimamente não estava permitindo. De quebra, pude conhecer sua nova produção, por sinal grande e bela. Um dos grandes baratos dessa sua nova fase é que abandonou os suportes tradicionais e vem utilizando o verso de banner, aquele material plástico que muitos artistas e produtores culturais utilizam amplamente para divulgar seus shows. É lamentável, mas esses materiais são altamente predatórios. Utilizados apenas para um evento específico, logo são descartados e ninguém sabe o que fazer com eles. Na natureza levam dezenas de anos para se decomporem. Esse pessoal tinha que abrir mão disso, pensar um pouco que a cultura precisa e deve ser sustentável. Felizmente nas mãos de Márcio Aurélio eles se transformam em obra de arte!

PALMAS PARA LÚCIA

Assim como todo mundo, recebo diariamente dezenas de e-mails enviados em série. Nem os abro, claro. Mas este me foi enviado por uma pessoa confiável, Luiz Carlos Ribeiro. E o assunto da mensagem era “Lúcia Palmas”, assim mesmo no plural. Com esses nomes eu não poderia deixar de abrir a correspondência. Não me arrependi, naturalmente. Tratava-se do envio de um vídeo curtinho, mas delicioso. Era Lúcia Palma interpretando o poema “Nasci antes do tempo”, de Cora Coralina. Ficou melhor ainda, pois gosto muito da poetisa goiana. Lúcia Palma, que já tive o prazer de ver atuando nos palcos, dá um show de interpretação, como era de se esperar. Que bom rever Lúcia representar, ela que é uma das nossas grandes atrizes. Tomara que faça mais outros trabalhos como atriz, para o nosso deleite. O vídeo tem direção de Thyago Mourão, que infelizmente não sei quem é. Mas já tem a minha simpatia e admiração. É talentoso!

PUXANDO PELA MEMÓRIA

Eu disse na última edição de minha coluna no Folha do Estado que voltaria ao assunto relativo à nossa falta de memória. Faço isso, dentre outros motivos, levado pela cobrança de um leitor, que também é meu amigo de muitos anos. Trata-se do advogado Nivaldo Conrado, poconeano há muitos anos radicado em Cuiabá. Pois bem, Nivaldo chama a minha atenção para o esquecimento (ou ingratidão) ao Camilo Ramos dos Santos, não da minha parte especificamente, mas da sociedade cuiabana. Nivaldo se indigna ao perceber que ninguém faz qualquer referência ao Camilo quando o assunto é teatro. E isso é verdade, meu amigo. Camilo deu um grande impulso ao teatro mato-grossense, particularmente nos anos 70. Primeiramente no Colégio São Gonçalo e, mais tarde, no SESI, onde dirigiu e iniciou muita gente que mais tarde viria a brilhar nos palcos deste imenso Mato Grosso: Liu Arruda, Mara Ferraz, Rubinho, Regina Lobo, Malu Calçados, Ilton, Zé Mario, Sebastião, Monteiro, Geraldo, Cir Luiz, Nagib, o próprio Nivaldo e eu, dentre tantos outros. Aliás, a primeira vez que fui a um teatro, foi para assistir a uma peça do Camilo: “A Moreninha”, com parte desse pessoal no elenco. Eu tinha apenas dezessete anos de idade. Mas isso foi decisivo em minha vida. Foi amor à primeira vista. Na semana seguinte eu já fazia parte do grupo. Um dos grandes obstáculos à minha permanência lá, foi o meu pai. Quando ele viu que eu estava em companhia de pessoas “esquisitas”, para a ótica dele, proibiu-me de continuar freqüentando o grupo. Fiquei arrasado. E quem veio em meu socorro? Nivaldo Conrado, ora pois! Talvez nem ele se lembre disso. Já na época um homem eloqüente, por isso hoje é um advogado brilhante, Nivaldo convenceu meu pai a me deixar atuar como ator. Por isso sou-lhe grato, eternamente!